Percepções

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Crianças são as primeiras vítimas

                                                                                                            MARIA CLARA BINGEMER

Da mão da mãe para a mão do soldado, da mão do soldado para a mão do pai, da mão do pai para a mão das comissárias de bordo. Todas essas passagens para ser levado em direção a um futuro de hipotética liberdade. Esse foi o itinerário que muitas crianças afegãs percorreram nos últimos dias quando o Talibã tomou Cabul, a capital do Afeganistão.

Em uma situação de guerra e violência, as crianças são sempre as primeiras vítimas. Mais frágeis e vulneráveis, expostas a todas as agressões e perigos, muitas sucumbem à força do terror e da barbárie. Porém, outras sobrevivem misteriosa e milagrosamente. E, muitas vezes, graças ao gesto desesperado da mãe que arrisca separar-se da cria para que esta possa viver.

Nas cenas de Cabul, viu-se mulheres desesperadas com filhos nos braços, premidas pela multidão que se acotovelava na entrada do aeroporto. Na tentativa extrema de salvar o filho de ser esmagado e morto, levantavam as crianças acima de suas cabeças e os entregavam aos militares estadunidenses ou britânicos que se encontravam do outro lado do arame farpado.

Um dos pequenos afegãos, que devia ter menos de um ano, foi puxado por um dos braços a fim de fazer sua travessia em direção à esperança. Algum outro caiu em meio ao arame farpado. Outros ainda tiveram que ser encaminhados ao atendimento médico do aeroporto, afetados física e psicologicamente pela pressão a que foram submetidos.

Do outro lado da corrente de mãos estava o pai, ou um parente. Lá se encontrava ou chegou depois. Em todo caso, para que alguma criança pudesse embarcar nos aviões estadunidenses, era necessária a presença de algum familiar. E lá se foram os pequenos, tão cedo golpeados pela provisoriedade da vida e da condição humana. Ontem tinham um lar, uma família, paz e rotina. Hoje são passantes, passageiros, transeuntes que galgam as mãos que os conduzem onde não escolheram, em outra terra e outra cultura, na esperança de encontrar uma vida melhor.

Decidem por eles, esperam por eles, desejam por eles. Eles e elas são pequenos, não têm ainda condições de fazer opções importantes e devem seguir o que os pais escolhem. Mesmo que essa escolha os afaste do pai ou da mãe. Ou de ambos. Em todo caso da pátria, da língua, de todo o ambiente que começavam a reconhecer e aprender a chamar de seu.

No avião, as crianças afegãs eram vencidas pelo sono e o cansaço. E o chão da aeronave foi muitas vezes seu lugar de repouso. Como cobertor, o casaco de um uniforme militar emprestado para agasalhar e proteger do frio. Ao seu redor dezenas, centenas de compatriotas em trânsito para um destino incerto que naquele momento representa a única esperança.

Resta-lhes a vida. E não é pouca coisa. Outros pequenos não tiveram tanta sorte. Estavam na rota da explosão do ataque suicida. Passaram diante da mira da arma que atirou. A esses que passaram de mão em mão, resta a vida. E a vida pulsa, respira, espera, se movimenta. E o avião é como um pássaro de grandes asas que conduz as vidas inocentes e indefesas rumo a outra paisagem.

Na história da humanidade, conhecemos a narrativa de várias ocasiões em que mães fizeram isso, a fim de salvar seus filhos. Separaram-se deles e os entregaram a outros como único caminho para salvar suas vidas. Assim a Bíblia Hebraica no segundo capítulo do livro do Êxodo. Os hebreus eram escravos no Egito e uma mulher hebreia concebeu de um homem da casa de Levi, devendo esconder seu filho para que nenhum mal lhe acontecesse. Após três meses, não podendo escondê-lo mais, levou-o em um cesto ao rio e ali o deixou. A filha do faraó encontrou o bebê e o levou para casa, sabedora de sua origem. No palácio, o menino se educou e cresceu, sendo chamado de Moisés, o salvo das águas. Será ele mesmo que, adulto, libertará o povo do cativeiro e da escravidão.

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