De Palomas

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Olhe para baixo

Sobre o filme Não olhe para cima

O nebuloso ano de 2021 chega ao fim com um filme da Netflix brilhando: “Não olhe para cima”, de Adam McKay, com Leonardo di Caprio, Jennifer Lawrence e Meryl Streep. A história é simples como o surgimento e a negação de um vírus devastador: cientistas descobrem que um cometa gigantesco vai colidir com a terra em seis meses. Nada sobrará. Começa o périplo para convencer da veracidade da afirmação e tentar evitar a catástrofe, pois, em princípio, ela é evitável. Sobra para todo mundo na sátira: governo, mídia, empresários gulosos, cientistas que não sabem se comunicar, celebridades, cidadãos lobotomizados pela sociedade do espetáculo, aquela em que tudo deve ser leve, divertido, rápido, positivo, até o anúncio da catástrofe.

Guy Debord criou a expressão “sociedade do espetáculo”, título do seu livro clássico publicado em 1967. Numa das suas teses (são 221), definiu: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens”. Melhor seria dizer “midiada”. O espetáculo é um modo de vida da sociedade “medíocre”. É isso que “Não olhe para cima”, filme que parece mimetizar, na hora certa, outros tantos filmes do gênero, mostra. Debord disse ainda: “O espetáculo não diz nada além de, o que é bom aparece, o que aparece é bom”. Para aparecer na mídia, o anúncio da catástrofe precisa dar audiência. Mas pode dar mais audiência do que o pedido de reconciliação ao vivo, depois de uma traição, de duas celebridades da era TikTok? Papo reto: ninguém acredita na terrível notícia. Ponto.

A presidente dos Estados Unidos tem mais com o que se preocupar: as eleições legislativas e um escândalo sexual. A diretora da NASA é uma anestesiologista. A descoberta é feita por uma doutoranda de uma universidade provinciana. A mídia e as autoridades só acreditam em imagens de marca, não em evidências coletadas. Querem o veredito dos seus especialistas de estimação. O cientista responsável, orientador da doutorada, não sabe se comunicar. Acha que falar difícil faz parte das suas obrigações. O negacionismo corre solto. Por muito tempo, a ciência apresentou-se como produtora de verdades definitivas. Depois, como não se consegue provar tudo, passou a ser mais modesta. Nas últimas décadas, ficou tão modesta que colocou quase tudo em dúvida.

Abriu caminho para que oportunistas a contestem quando bem entendem. Nem tudo depende de ponto de vista: a Terra não é plana. A dengue não é transmitida por uma formiga. A Covid-19 é provocada por um vírus, não por uma bactéria. O filme satiriza o hermetismo científico e a superficialidade da mídia, com seus apresentadores cínicos, despreparados, rasos e pretensiosos. O sistema mídia legisla sobretudo, até sobre a aparência dos entrevistados. O produto final é, cada vez mais, entretenimento. Por fim, o sistema econômico não quer perder oportunidade de faturar. O sempre sorridente financiador de campanha e patrocinador enxerga oportunidade de negócios na exploração do cometa e faz abortar a missão que o desviaria da Terra.

Nada de novo no front – Houve quem dissesse que o filme se inspirou em personagens brasileiros. Não é verdade. Mas poderia. Afinal, as figuras satirizadas são globais. Que país não tem político negacionista, apresentador de televisão com a profundidade de um pires, militantes jurando neutralidade, celebridades de redes sociais lavando cuecas e calcinhas em público e investidores prontos a impor suas verdades financeiras com base no mantra “vai criar empregos”? É claro que alguns países se destacam na maioria desses vastos itens.

Se Debord desmascarou a sociedade do espetáculo, seu amigo Jean Baudrillard, o homem, como gosta de dizer a mídia, reduzindo-o aos seus valores mais caros e bem-sucedidos, que inspirou “Matrix”, sepultou as suas utopias. Debord acreditava na purificação pela mudança do modo de produção. Baudrillard só faltou dizer “que venha o cometa”. Simular é fazer crer que se tem o que não se tem; dissimular é esconder o que se tem. No simulacro não há mais referência. Tudo é “produção”, marketing radicalizado, aparência forjada, truque. Na linguagem atual, narrativa sem fato contra o qual ser conferida.

Não é o conteúdo que conta, mas a embalagem. Quando tudo vira ficção, só a forma tem valor. Acontece que até a ficção virou ficção. Obedece cada vez menos ao que descreve com determinada forma e mais ao que a envolve. O autor ressuscitou. “Não olhe para cima” é sobre convicções em lugar de fatos. Resultado de um longo trabalho de desconstrução que sustenta não haver fatos, mas só interpretações. Terminamos mais um ano no círculo hipermoderno: a mídia diz que só dá ao público o que ele pede; o público se contenta com o que lhe é oferecido. Se não pede, tampouco recusa. Se o faz, não alardeia.

 

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