Encontro com José Saramago
Parafraseando Jaime Caetano Braun com o Encontro com Juca Ruivo, de improviso numa tarde,
“Virava de meio dia,
tempo quente de mormaço.
Quando pegaram meu braço
era o Nogueira Leria,
índio que a gente aprecia,
crioulo do cerne atona.
Vinha rustindo carona
no costado d’outro qüera.
Era o Ruivo da tapera.
Era o Ruivo da cordeona.
Era o Ruivo que venero
desd’as tropeadas da infância
e que aprecio à distância
com grande apreço sincero.”
saí por indicação de uma amiga à procura de um acervo literário português, Real Gabinete Português de Leitura, no centro do Rio de Janeiro. Perdido entre ruas e calçadas estreitas, sujas e esburacadas, entre ônibus, trem elétrico, motos e bicicletas, burburinho de um trânsito caótico e assustador me veio à lembrança a música de Adorinan Barbosa, Iracema, interpretada brilhantemente pela cantora iniciante à época Elis Regina.
“Iracema eu sempre dizia,
Cuidado ao atravessar estas ruas,
Iracema,
você atravessou na contramão. O chofer não teve culpa.”
A lembrança aguçou mais a minha mente para safar-me daqueles perigos eminentes, com um tornozelo fraturado, uma perna não muito firme, ainda em recuperação tendo, porém o privilégio de ter uma escudeira ao lado. Cuidado aqui! Cuidado ali! Olha o buraco! O trânsito! Ufa!! Por fim cheguei ao Real Gabinete e uma fila imensa me esperava. Ao perguntar ao porteiro se tinha que ir ao fim da fila ele gentilmente mandou entrar. O Rio de Janeiro se caracteriza por um alto índice de velhos e estes são muito respeitados em todos os lugares. De restaurante a supermercado, teatros, shows, aliás o Brasil tem leis muito avançadas no que se refere aos idosos, crianças, mulheres, gestantes e minorias. Embora não sejam totalmente respeitadas, elas estão aí e como cidadãos estamos evoluindo. Recordo em uma viajem ao Panamá me deparei também com uma fila gigantesca no Aeroporto, procurando alguma brecha para fugir da fila, encontrei uma placa de prioridade. Questionei um atendente truculento se era para idosos o que foi repelido com rudeza. Prioridade para quem tem cartão especial plus não sei o que, me disse. Fui mandado para o fim da fila onde estavam velhos, gestantes, crianças e jovens saudáveis.
Não gosto de usar a tal prioridade para idoso. Trocaria qualquer posição em fila quilométrica por anos menos. Aliás, achei engraçada uma charge com dois idosos sentados no banco de uma praça onde passava uma mulher estonteante. Um disse para o outro – trocava tudo para ter 20 anos agora. O outro respondeu: – para que, por uns momentos de prazer e ter de voltar a trabalhar por mais 45 anos até se aposentar?
Pragmatismo puro.
Divagando lembro da minha avó, no tempo que as avós eram corcundinhas, mal enxergando a frente, os cabelos brancos e rugas profundas. Hoje as avós são diferentes, academias, pilates, cabelos coloridos, sobrancelhas delineadas, botox em tudo, sem nenhuma ruguinha, lábios cheios e virados por preenchimentos.
Quando perguntava a ela se estava bem, sempre respondia a mesma coisa, e me marcou, nunca esqueci – tenho a doença mais grave do mundo, que não tem cura, a velhice. Neste meio século e tanto melhorou muito, mas ainda continua uma verdade, se fez bastante para melhorar as aparências, mas a essência da velhice está lá.
Por fim, entrei no Real Gabinete. Um espetáculo, livros e mais livros, um acervo de preciosidades literárias, decoração impecável em madeira, um vitral de teto magnífico, dos mais antigos do Brasil, e um lustre pendente deslumbrante. Poucas coisas me fascinam mais do que livros, história sobre livros e bibliotecas. “A menina que roubava livros”; “A longa viaje da biblioteca dos Reis” e tantos outros. O cheiro de um livro, do ambiente de uma biblioteca é sem igual. Tietei as figuras dos grandes escritores portugueses, Saramago, Camões e outros. Deste último, lembro quando no colégio Marista fazíamos estudo de gramática, as métricas, rimas e interpretação. Quem não há de lembrar?
“As armas e os Barões assinalados. Que, da Ocidental praia Lusitana, por mares nunca dantes navegados, passaram ainda além da Taprobana, em perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana, e entre gente remota edificaram, Novo Reino, que tanto sublimaram”.
Fiquei fascinado com a descrição das obras de Saramago, primeiro prêmio Nobel em Literatura da Língua Portuguesa, e com uma especial: O Evangelho segundo Jesus Cristo. Onde acharia esta obra antiga? Na internet? Em livrarias?
Depois da visita voltei a rua e a realidade, sujeira, mistura de riqueza e pobreza extrema, com mendigos atirados nas calçadas e prédios ricos e suntuosos misturados a construções em ruínas. Mas 50 metros adiante passo por uma livraria mambembe de sebos. Livros, discos antigos, tudo atirado, e pessoas revirando aqueles entulhos. Me deparei com um sujeito pouco simpático mexendo num computador. Tens livros do Saramago? Pouca coisa, respondeu ele. Deu dois passos e me trouxe na mão um livro escuro, pequeno, com jeito antigo parecido com aquelas Bíblias de bolso. Aqui só tem este: olhei. O Evangelho segundo Jesus Cristo. Quase caí sentado. Quanto? 10. Dez o que? Reais. Não acreditei, para mim aquilo valeria uma fortuna. Paguei, coloquei em baixo do braço e me fui. Louco para começar a ler. Sentado num banco de concreto no meio daquele comércio infernal do centro da cidade, procurei como sempre faço antes de iniciar a leitura de um livro, a primeira orelha, nada, a segunda nada. Capa dura, páginas amarelas marrons de antigo. Prefácio, nada. No interior apenas uma citação de Lucas 1, 1-4. E aí o livro começa começando, sem nenhum preâmbulo, e que maneira doce e espetacular de contar história.
Tanto tempo perdido depois, encontro este mestre. E volto ao Jaime Caetano Braun- “Juca Ruivo (José Saramago) não é lenda, eu conheci este cantor (escritor)”.
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